quarta-feira, 23 de junho de 2010

A Internacional Situacionista e a crítica ao urbanismo na reconstrução européia do pós-guerra

11111111000000011111110000011111111000000011110000001010101010000000


Este trabalho de pesquisa, realizado com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), foi apresentado no ano de 2009 como parte das exigências acadêmicas para obtenção do título de licenciatura em História pela Universidade Guarulhos. O autor do trabalho é Andre Abreu da Silva, orientado por Claudio Hiro Arasawa.


INTRODUÇÃO


"A Cultura? Mas essa é a mercadoria ideal, que obriga a comprar todas as outras. Não é estranho que você queira oferecê-la a todos..." Fragmento de cartaz situacionista.


O objeto abordado neste estudo resgata algumas idéias e questionamentos de caráter cultural e político, que se fazem ainda válidos quando nos posicionamos a observar as atuais condições sociais e suas respectivas contradições, cada vez mais generalizadas no cotidiano urbano. Se colocados em pauta de maneira não fragmentada, tais questionamentos ainda possuem um frescor, apesar do ilusório distanciamento que sentimos do período em que foram formulados. Ilusões de afastamento estas causadas pelo frenético cotidiano imposto pela atual temporalidade hegemônica(1) nas cidades, sendo progressivamente difundido em escala global nas últimas décadas. Estas idéias merecem novas leituras e olhares por parte de todos os interessados nos debates sobre as atuais contradições presentes nas cidades.


As discussões aqui apresentadas podem se mostrar de suma importância para o desejo de sermos capazes de realizar outros usos de todo o conhecimento, informações e tecnologias já desenvolvidas pelo intelecto humano, para a partir daí conquistarmos um maior bem estar e desenvolvimento dos seres humanos inseridos hoje na esquizofrênica lógica urbana, uma vez que a cidade é o espaço primordial no qual se desenvolve a sociabilidade, a moradia, a convivência, os aprendizados, as simbologias e as trocas fundamentais para uma vida plena dos homens.


O urbanismo como disciplina possui uma relevante responsabilidade política, por possuir a legitimação do Estado para realizar as transformações, redimensionamentos, construções de ambiências, e outras atividades infra-estruturais desejadas nos espaços físicos que serão habitados por estes homens, por meio dos órgãos competentes das esferas tecnicistas. Automaticamente, estas esferas dos técnicos adquirem um forte poder de Estado por estarem engendradas neste organismo, e por este motivo, convém analisarmos com muita atenção as motivações ideológicas inerentes a estes intelectuais que representaram os braços e mãos dos poderes governantes, e que tomaram em um determinado momento histórico decisivo, de maneira impositiva, as decisões sobre o direcionamento e fluxos econômico-sociais destas cidades. Um ajustamento da classe dos técnicos em relação aos interesses dos grupos dominantes (ARASAWA, 2008, p.166).


Poderemos neste sentido, nos apropriar de uma entre as infindáveis definições de cidade propostas por estudiosos urbanos das mais variadas disciplinas, e que permanecem instigando na atualidade as reflexões e debates abordados. O sociólogo e filósofo da cidade Henry Lefebvre, nos oferece então uma importante contribuição para esta definição desejada, que leva em conta justamente a questão do urbanismo como ferramenta de propagação ideológica proposta no trabalho; "A cidade seria a projeção da sociedade sobre um local, percebido e concebido pelo pensamento que determina a cidade e o urbano" (LEFEBVRE, 2001, p.62). Lefebvre no mesmo texto, ainda nos instigou a refletir um pouco mais sobre o papel do poder de Estado e suas relações com a cidade. Ele afirma que na visão do poder dominante, a cidade consiste num local de efervescência e emanação de idéias potencialmente subversivas, e a sua estratégia para a perpetuação da lógica que legitima o seu poder, consiste na degradação, destruição, desvalorização e fragmentação dos espaços urbanos (LEFEBVRE, 2001, p.83 - 85).


Um grupo de jovens europeus da década de 50, realizou um conjunto de críticas teóricas e práticas radicais às interferências causadas pelo urbanismo tanto nas paisagens das cidades européias no contexto do pós-II Guerra, quanto no comportamento das pessoas ali inseridas. Utilizado como uma importante ferramenta ao alcance dos poderes estabelecidos para consolidar um determinado consenso político para a reconstrução e reestruturação destas localidades destruídas pela guerra, o urbanismo fora um eficaz instrumento para uma ideal inserção das massas populares nesta nova ordem a ser construída e estabelecida. O movimento Internacional Situacionista surgiu em julho de 1957 na Itália, a partir da fusão de alguns movimentos de contracultura, estes influenciados também pelas vanguardas artísticas estabelecidas na Europa do pós-guerra. O grupo possuía personalidades de diversos países, tais como escritores, artistas, ativistas políticos, entre outros (2).


Após a consolidação formal da organização situacionista, as suas convicções acerca das questões urbanas eram direcionadas contra a organização proposta pelas tecnocracias oficiais do período, defensoras do racionalismo da arquitetura modernista, encarregadas de construir e reformular as cidades nos moldes das exigências dos poderes consolidados naquele contexto, e que na visão da I.S. não promovia uma emancipação satisfatória dos indivíduos nestes projetos. Toda a problemática levantada pelo grupo em torno da questão do modo de se organizar tecnicamente as cidades européias naquele momento específico, deu origem a interessantes métodos de reconhecimento e experimentações espaciais diversas da paisagem urbana, que até então passava por constantes modificações, e dos impactos causados por estas mudanças na esfera psíquica e afetiva dos indivíduos. Surge então o conceito chave do grupo, como tentativa prática da revolução e transformação da vida cotidiana urbana: a construção de situações. Uma maneira de se elevar os indivíduos da condição de meros espectadores de sua própria existência, a vivenciadores e sujeitos ativos de sua própria história, interagindo de forma direta com o seu meio e combatendo a alienação e a passividade social. Este conceito, colocado em prática através dos métodos e teorias concebidos para os espaços urbanos, dariam origem ao pensamento crítico situacionista para as cidades, o Urbanismo Unitário (Revista I.S. n1, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 65).


Entre estes métodos e experimentações podemos citar a psicogeografia, teoria definida pelos situacionistas como “o estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (Revista I.S. nº1, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 65); e a deriva, procedimento no qual se coloca em prática a psicogeografia, na qual o pedestre realiza um mapeamento e captura visual sobre as diferentes ambiências e localidades onde seriam possíveis a realização de novas apropriações espaciais, subvertendo as simbologias usuais e agregando novos usos e valores para estes espaços, através do conceito de détournement(3) difundido de inúmeras maneiras, para a prática efetiva do Urbanismo Unitário. Porém com o passar do tempo, ocorre um racha nas lideranças do grupo(4), e um desinteresse de seu núcleo principal na questão urbana, canalizando exaustivamente suas energias críticas às esferas políticas. Após o abandono do pensamento urbano situacionista a partir de 1961, as suas atividades e produções, não menos revolucionárias, dirigiram-se para as exigências nas mudanças infra-estruturais da sociedade, sobretudo na observada questão da ascensão econômica opressora do modo de produção capitalista, por meio de táticas de caráter fortemente cultural.


A dedicação quase exclusiva de seus membros oficiais às ofensivas políticas contra a forma de organização social dominante foi pouco a pouco tomando proporções cada vez mais radicais, com idéias que pareciam atravessar as mais densas paredes de concreto das estruturas pré-estabelecidas pelo consenso político através das ideologias propagandeadas em larga escala pelos poderes dominantes. Na medida em que as teorias situacionistas se tornavam cada vez mais extremas, posicionadas de maneira iconoclasta cada vez mais à esquerda dos espectros intelectuais e políticos que dividiam a ordem mundial no contexto, o grupo ganhava cada vez mais notoriedade no final da década de 60, tanto para o bem quanto para o mal. Com toda esta visibilidade crescente, principalmente pelos textos e manifestos divulgados pelos membros utilizados como base teórica (JACQUES, 2003, p.31) para uma revolução de curta duração desencadeada no início do mês de Maio de 1968 na cidade de Paris, com denúncias cada vez mais purulentas da miséria cultural social vivenciada no momento, provocaram profundas reflexões e questionamentos sobre os rumos da estabilização de um modelo de organização estrutural imposto a toda sociedade no período.


O grupo oficialmente deixou de existir após sua auto-dissolução em 1972, mas para as suas lideranças, as convicções eram de que as mudanças e novas situações uma vez almejadas durante toda a sua existência iriam começar a partir dali (JACQUES, 2003, p.18). Para melhor entendermos o pensamento do grupo, é necessário um exercício constante de análise do imaginário da época, muitas vezes influenciado pelos embates políticos e ideológicos que marcaram os anos do pós-guerra, como o maniqueísmo "capitalismo/comunismo", contando ambos os lados com seus intelectuais oficiais(5) cuja a missão era a de disseminar através de suas obras e manifestações, diversas mensagens de teor político e ideológico, com a intenção de se consolidar um poder político hegemônico.


E o urbanismo, como atividade intelectual ligada diretamente ao diálogo e a mesclagem dos ideais culturais com a realidade física social construída, sem dúvida, fora um dos principais e mais contundentes alvos da crítica teórica e das práticas experimentais dos situacionistas em sua primeira fase, que souberam reconhecer e identificar os mecanismos e ferramentas utilizados por esta disciplina nas ações observadas de manipulação e coerção social(6). Uma continuidade e evolução das críticas que seus membros já realizavam em outros grupos no período anterior à fundação da I.S. (JACQUES, 2003, p.16-18), não somente da arquitetura e urbanismo, mas também ao modo de como as vanguardas artísticas e seus respectivos intelectuais foram absorvidos pelos ideais da cultura mercadológica dominante, e suas produções aos poucos tornaram-se completamente alienadas do cotidiano social.


Essa forma de denúncia realizada pela I.S. das tentativas dos poderes que se tornaram hegemônicos, de se introduzir nas cidades através do urbanismo como ideologia, uma determinada padronização dos fluxos e relações sociais e também da redução das necessidades dos indivíduos, constituiu-se em uma dimensão fundamental deste trabalho. Neste sentido se fez necessária uma investigação maior sobre a visão crítica da I.S. na reconstrução das cidades européias no contexto citado. A problemática levantada aqui, para entendermos as etapas e configurações do pensamento urbano situacionista, recai principalmente sobre o abandono das idéias materializadas na forma do urbanismo unitário, em detrimento do ativismo político-cultural que determinou o posicionamento dos situacionistas a partir de então. Neste caso, pretenderemos demonstrar se são realmente válidas duas afirmações no presente estudo: na primeira fase da I.S., a transformação da cidade para modificar a sociedade; Na segunda fase, a transformação da sociedade para a modificação da cidade.


1- SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001.


2- O movimento fora formado a partir da fusão dos grupos Internacional Letrista, O Movimento Internacional Por uma Bauhaus Imaginista e a Associação Psicogeográfica de Londres (BADERNA, 2002. In: BADERNA, 2002, p. 14).


3- O termo traduzido para o português pode ser entendido como "desvio". Os membros da I.S. utilizavam a expressão para descrever um método estratégico que consistia em tomar as coisas dos inimigos, para montar uma outra coisa, que ajude a combater estes adversários (BADERNA, 2002. In: BADERNA, 2002, p.16). Foi uma das táticas de subversão pacífica, através de imagens e símbolos pré-existentes mais utilizadas pelos membros da I.S., e mais adiante largamente difundidas nos manifestos dos movimentos antiglobalização. Em meados do ano 2000 por exemplo, alguns cartazes de propaganda com fotografias de políticos no metrô de Paris foram sabotados com cifrões colados por cima dos olhos.


4- HOME, Stewart. Assalto à cultura – utopia, subversão, guerrilha na (anti) Arte do século XX. São Paulo: Conrad Livros, 1999.


5- GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere – vol2. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2000. Este volume em específico possui uma rica abordagem e análise a respeito da função social dos intelectuais que, na visão gramsciana, organicamente agem na mesclagem da supra-estrutura com a infra-estrutura social, de acordo com o pensamento marxista, e que torna um consenso de dominação política e cultural hegemônico num determinado período da história, formulando o conceito de bloco histórico.


6- Uma das estratégias dos técnicos observadas para este fim é na utilização das máquinas e meios de comunicação na disseminação e persuasão dos ideais urbanísticos perante a opinião pública. ARASAWA, Claudio Hiro. Engenharia e poder: construtores da nova ordem em São Paulo (1890/1940). São Paulo: Editora Alameda - 2008.





CAPÍTULO I


A Internacional Situacionista no tempo e no espaço


O momento histórico que circundou o surgimento e boa parte da existência da Internacional Situacionista fora o período imediato do pós-II Guerra, dividido ideologicamente entre as duas novas potências mundiais imperialistas; de um lado os Estados Unidos da América e o seu desejo de expansão e consolidação dos mercados capitalistas e influência política; do outro a União Soviética, que se mantinha como pólo de poder, mas diferenciava-se pela área de abrangência política no globo, efetivamente menor do que os E.U.A, e pelo tipo de economia planificada e não expansionista do socialismo de Estado praticado por Stálin (HOBSBAWN, 1995, p. 223-252).


As cidades européias naquele contexto, muitas delas completamente arrasadas pela guerra, necessitavam ser então reconstruídas. Este contexto de disputa territorial e política entre E.U.A. e U.R.S.S., poderia ser um ótimo pretexto para estruturar as cidades convenientemente de acordo com as exigências das economias industriais em constante crescimento e solidificação no período. Seria a união do útil ao agradável; aumentar e consolidar a economia capitalista e o bloco socialista, e ao mesmo tempo impedir o avanço de uma possível ameaça nestes territórios. O ocidente europeu, a estas alturas já totalmente dominado pelo poderio do capital estrangeiro estado-unidense, logo recebera uma ajuda financeira em forma de verbas, e não empréstimos a juros como de costume, para financiar a reconstrução de suas cidades.


Realizado deste modo, o Plano Marshall formatado no ano de 1947 (HOBSBAWN, 1995, p. 237), forneceu os recursos financeiros para o ressurgimento das cidades européias ocidentais, e que mais adiante ainda auxiliariam na sustentação da grande expansão do capitalismo mundial, causando o fenômeno de transnacionalização do capital e um crescimento econômico nunca antes vivenciado em toda a Europa. Este período que se extendeu aproximadamente até o final da década de 1970 foi conhecido como a Era de ouro, também chamada de os trinta anos gloriosos (HOBSBAWN, 1995, p. 253). Curiosamente, tal expansão industrial e econômica também atingiu e beneficiou os países que faziam parte da esfera de influência da URSS, resultando num pacto de moderação diplomática, que buscava evitar um possível confronto direto entre as superpotências (HOBSBAWN, 1995, p. 240-241), e também num crescente sentimento geral de satisfação e apatia política nas sociedades, principalmente pela facilidade de acesso à um maior conforto e um aumento considerável do poder de consumo para um novo mercado de massas.


Neste momento porém, notamos algumas evidências do início do desgaste interno do bloco soviético consolidado e do socialismo posto em uso pelo Partido Comunista, como prática revolucionária viável ao capitalismo instaurado no ocidente europeu, como demonstrou a Revolução Húngara de 1956 (HOBSBAWN, 1995, p. 387). Violentamente contida e esmagada pelo exército vermelho, talvez tenha sido um dos fatores que influenciou o direcionamento do movimento situacionista a uma postura de autonomia política, ideológica e metodológica. O efeito imediato destes acontecimentos no bloco soviético demonstraram certa defasagem observada do modelo de Estado socialista implantado no período pós-guerra, e uma tendência cada vez mais distante de oferecer uma alternativa revolucionária viável para a superação definitiva da lógica da mercadoria que fundamenta a base do poder capitalista.


Levando tais aspectos em consideração, as bases de ação da I.S. foram politicamente estruturadas e formuladas de maneira mais evidente, a partir de adaptações teóricas particulares do socialismo científico e de outros autores revisionistas, igualmente dissidentes ou críticos do socialismo de Estado oficial (estalinista). E em menor medida, mas exercendo significativas influências conceituais, observamos alguns autores isolados do pensamento socialista utópico, como o francês Charles Fourier (1772-1837), que implementou na prática experiências urbanas alternativas à sociedade industrial capitalista de sua época, os Falanstérios (JACQUES, 2003, p. 33).


Já as vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, principalmente com o Surrealismo, exerceram talvez a maior fonte de inspiração aos situacionistas, antes que tais vanguardas fossem absorvidas pelo establishment no pós-II Guerra, com a crescente mudança de finalidade destas manifestações artísticas influenciadas progressivamente pela lógica da mercantilização industrial capitalista na sociedade. Resultado talvez da era da reprodutibilidade técnica das artes, conceito de Walter Benjamin (HOBSBAWN, 1995, p. 501), que explica a transformação não apenas da criação, mas também da percepção e interpretação das obras artísticas, naquele momento de ascensão e consolidação dos meios de comunicação para as massas como o rádio, o cinema e principalmente a televisão, sendo estes poderosos aliados do poder estabelecido do capital industrial.


Os situacionistas logo perceberam que tal estado de dormência e alienação social aumentava em progressão geométrica; por um lado, como resultado das políticas realizadas pelo Estado de Bem-estar social nos países europeus ocidentais (HOBSBAWN, 1995, p. 292), e por outro, das práticas observadas dentro do bloco soviético, que isolava estes países através do totalitarismo posto em uso pelo regime estalinista, que cerceou as liberdades individuais pela imposição de um poder excessivamente autoritário, que buscava sua legitimação popular através da propaganda política massificada, e muitas vezes também pela violência. Esta análise situacionista da alienação, traduzida resumidamente como a mediação de todas as relações sociais através de imagens, símbolos e representações alheias à participação direta popular, deram origem ao amplamente divulgado conceito de Espetáculo(7).


Neste período de crescente prosperidade econômica, no qual as forças do capital mundial encontraram suas bases de sustentação para uma reprodução contínua e multiplicadora deste quadro de bem-estar social, que fora também muito ajudado por um rigoroso planejamento econômico estatal por parte dos países ocidentais europeus, que se apropriaram dos modelos de gestão da economia soviética, afastando se consideravelmente das prerrogativas da velha lógica mercantil liberal de auto-regulação econômica (HOBSBAWN, 1995, p. 247 e 265), as esferas culturais sob o domínio do alto modernismo (HARVEY, 1992, p. 19 - 42)(8) como emanação oficial do establishment, também já cristalizavam seus posicionamentos em fina sintonia com a política internacional e a lógica industrial expansionista, tendo os E.U.A. se tornado o modelo a ser seguido de sociedade industrial capitalista bem-sucedida (HOBSBAWN, 1995, p. 259).


De maneira lógica, e estando inserido dentro da cultura oficial que legitimava nesta esfera a expansão industrial capitalista em larga escala, o urbanismo europeu do pós-guerra deveria então atender as novas demandas deste mercado de massas, assim como a infiltração de um novo modo de vida calcado nos ideais mercadológicos de consumo de bens materiais. A invasão automobilística na Europa, sem dúvida fora uma das principais demandas industriais a serem atendidas e priorizadas por este novo urbanismo (HOBSBAWN, 1995, p.259), e que colaborou no processo de descaracterização e desumanização dos espaços destinados aos fluxos nestas cidades, crítica largamente difundida pelos situacionistas (Revista I.S. n3, 1959. In: JACQUES, 2003, p. 113). A Carta de Atenas, doutrina urbanística redigida na década de 30 por um dos principais arquitetos e urbanistas modernistas da história, Le Corbusier, durante o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), evento este que reunia periodicamente os arquitetos e urbanistas do período, logo começou a ser posta em prática nestas localidades a serem reconstruídas (JACQUES, 2003, p.25).


Este novo modelo, conhecido como urbanismo funcionalista, fortemente baseado na economia industrial, apresentava uma cidade feita à imagem e semelhança desta lógica. Dividiu artificialmente o espaço urbano em funções distintas, concebidas pelos modernistas para as massas com uma intenção apaziguante e tranquilizante. O funcionalismo exposto por Le Corbusier possuía também a prerrogativa de evitar através das construções possíveis revoltas provenientes das massas, fortemente incitadas pelos movimentos sociais no período; "Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução" (JACQUES, 2003, p.20)(9) . E por outro lado, a arquitetura modernista em sua história também obteve substanciais influências de conceitos provenientes da ideologia comunista em suas obras, construídos contraditoriamente nos espaços completamente dominados pelas práticas capitalistas(10).


Outro aspecto muito criticado pela I.S. na Carta de Atenas era a ausência do conceito de homem como indivíduo, sendo citado sempre como prisioneiro da coletividade. Além disso, era idealizado para um determinado comportamento nestas novas localidades; o Modulor proposto por Le Corbusier no documento, claramente omitia a existência dos homens da vida real das cidades (JACQUES, 2003, p.26). Outro item largamente observado pelos situacionistas fora a progressiva perda das dimensões humanas da cidade funcionalista em seus traços, criando ambientes que muitas vezes se revelariam hostis, degradados e enfadonhos. Uma das principais contribuições da arquitetura modernista neste sentido, e constante alvo de ataque dos situacionistas, foram as construções em massa dos grandes blocos de conjuntos habitacionais, disseminados em larga escala e produzidos em série. Nas palavras do historiador britânico Eric J. Hobsbawn, uma justificativa razoável para entendermos a crítica situacionista ao urbanismo europeu do período pós-guerra: "[...]até então os centros das cidades, grandes e pequenos, foram postos abaixo e incorporados por todo o mundo[...]. Como as autoridades no Oriente e Ocidente também descobriram que se podia usar métodos industriais para construir rapidamente conjuntos habitacionais baratos, enchendo os arredores da cidade de prédios de apartamentos visivelmente ameaçadores, a década de 1960 provavelmente ficará como a mais desastrosa na história da urbanização humana" (HOBSBAWN, 1995, p.257).


De certo modo, estas diretrizes urbanas atingiram outras cidades globalmente, fixando as estruturas para a consolidação hegemônica do modelo de desenvolvimento econômico capitalista estado-unidense, que na época em questão deixava clara a sua condição de superioridade perante seu adversário soviético, em termos de ganhos de espaço e influência política internacional.


7- DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


8- Na tese defendida por David Harvey na obra Condição pós-moderna, o modernismo universal ou alto modernismo, hegemônico depois de 1945, exibia uma relação muito mais confortável com os centros de poder dominantes da sociedade. Foi descrito pelo autor como uma ideologia fortemente calcada nos ideais positivistas, tecnocêntricos e racionalistas, e que crê no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção.


9- Citação encontrada pela autora na obra de CORBUSIER, Le. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1989.


10- As apropriações realizadas pelo regime capitalista das teorias e conceitos comunistas, foram efetivamente essenciais para a sobrevivência cultural e política do capital em alguns de seus períodos de crise. Podemos observar no período pós-guerra, as transformações políticas e econômincas executadas pelos Estados europeus ocidentais, aos moldes do Estado paternalista, regulador e assistencialista soviético. Tais medidas alavancaram significativamente a economia destes países. E nas esferas culturais, o diálogo entre os países comunistas e capitalistas parecia não respeitar as fronteiras e barreiras ideológicas que aparentemente opunham as duas sociedades.





CAPÍTULO II


A crítica ao urbanismo


"Pela ordem, promover a liberdade." Slogan proferido por Le Corbusier.


"Se os nazistas tivessem conhecido os urbanistas contemporâneos, teriam transformado os campos de concentração em conjuntos habitacionais." Trecho de texto escrito pelo situacionista Raoul Vaneigem.


Recuperar-se da guerra e reerguer as cidades destruídas, afastando-se das possíveis revoltas sociais e avanços do comunismo, fora a prioridade dos países ocidentais europeus após 1945 (HOBSBAWN, 1995, p.254), tendo o urbanismo e arquitetura modernistas como os representantes oficiais dos interesses do novo poder capitalista em fase de expansão e estabelecimento definitivo, tanto nos espaços completamente destruídos quanto nos espaços já ocupados anteriormente, e que possivelmente poderiam mostrar-se como uma barreira ou resistência a esta implementação. Tal situação de catástrofe permitiu mais facilmente a infiltração ideológica do urbanismo modernista nestes espaços, que promovia rápidas e baratas construções de conjuntos habitacionais atendendo à urgente demanda habitacional observada no período.


O conceito positivista de Tábula Rasa(11), que os urbanistas modernos apropriaram para justificar a planificação urbana realizada em larga escala nas localidades destruídas, e mais adiante defender a demolição de outras localidades para tal implementação, poderiam então ser postas em prática facilmente, estabelecendo de forma totalmente idealizada, as regras de direcionamento estrutural e de educação espacial nestas cidades atendendo aos interesses da nova cultura e poder estabelecidos.


A planificação realizada em larga escala pelo urbanismo funcionalista, provocava uma homogeneização do espaço urbano, renegando os aspectos de diversidade das localidades presentes nos tecidos urbanos, (LEFEBVRE, 2001, p.84) concebendo um palco e um contexto de ação e comportamentos determinados de acordo com um modelo pré-estabelecido de forma arbitrária, oferecendo-se como verdade total e dogma. Os arquitetos funcionalistas saberiam assim distinguir as localidades "saudáveis" das "doentes", e deste modo conceber um espaço ideologicamente adequado às demandas simbólicas do imaginário da cultura dominante (LEFEBVRE, 2001, p.49).


As idéias acima expostas, baseadas na obra Direito à cidade de Henry Lefebvre, se aproximam da crítica situacionista ao urbanismo do pós-guerra, personificado principalmente no paradigma concebido pelos modernistas. Lefebvre no entanto, forneceu como colaborador independente de vínculos formais com os situacionistas, importantes contribuições teóricas e conceituais durante um breve período entre a fundação da organização em 1957, até o início da década de sessenta(12), pouco antes da ruptura interna da I.S., e o redirecionamento de foco realizado por suas lideranças ao ativismo político. O intercâmbio realizado entre Lefebvre e os situacionistas, provavelmente influenciou o grupo na formulação do conceito de construção de situações, baseado na teoria dos momentos defendida por Lefebvre em sua obra Crítica da vida cotidiana (JACQUES, 2003, p.21).


A arquitetura e urbanismo modernistas, de acordo com os seus fundamentos baseados na separação de funções presentes na lógica industrial, muitas vezes dificulta, no caso dos operários, a realização de qualquer marca pessoal de seu trabalho, assim como na maioria dos casos, o próprio usufruto das construções. No caso dos usuários, tal condição de separação das funções impossibilita o encontro e a identificação de símbolos familiares e afetivos pelos indivíduos nas obras realizadas, por não participarem do planejamento e das outras etapas da construção. Tais aspectos de expropriação na participação criativa destes projetos, tanto dos operários quanto dos usuários, levam a um sentimento de perda de identificação pessoal nas obras, atribuindo a estas construções uma percepção e um sentimento de "território de ninguém"(13).


Nestas condições, o trabalho de planejar nestes espaços as necessidades subjetivas para os indivíduos, se tornaram atividades completamente alheias dos desejos dos homens comuns; esta tarefa seria atribuída exclusivamente a uma elite de técnicos que possuem a prerrogativa de se materializar uma forma ou modelo ideal de cidade. A crítica dos situacionistas ao urbanismo modernista fora contundente em um determinado momento da história dos integrantes do grupo, mais especificamente antes da formação da I.S., e no início de suas reflexões. Com o passar do tempo e o desenvolvimento de suas idéias, a crítica passou a transcender os paradigmas urbanísticos, e passou a ser exercida diretamente ao urbanismo como parte de um organismo maior e reprodutor da realidade social dominante como um todo. Mais adiante ainda, observaremos a negação do grupo a qualquer forma de urbanismo, enquanto este estivesse subordinado à lógica da mercadoria e do capitalismo. Para acompanharmos este desenvolvimento das idéias no campo do urbanismo pelos situacionistas, observaremos alguns momentos da crítica realizada aos modelos modernistas. Os fragmentos a seguir, foram retirados de números distintos da Revista pré-situacionista Potlatch, e ilustra tal caráter crítico inicial:


Os funcionalistas ignoram a função psicológica dos ambientes. A aparência dos edifícios e dos objetos que usamos, e que formam nosso ambiente familiar, tem uma função que está separada de seu uso prático (...).


(...) A arquitetura é sempre a realização última da evolução intelectual e artística, a materialização de uma fase da economia. A arquitetura é o ponto final na realização de qualquer esforço artístico, porque a criação arquitetônica implica na construção de um ambiente e o estabelecimento de um modo de vida(14).


O urbanismo pretensamente moderno que os senhores preconizam, nós o consideramos passageiro e retrógrado. O único papel da arquitetura é servir às paixões dos homens (JACQUES, 2003, p.25)(15).


Neste momento, as reflexões pré-situacionistas já possuíam características de denúncia à arquitetura e o urbanismo, e a maneira como esta disciplina poderia definir os fluxos sociais a partir de um modelo social pré-estabelecido. Por outro lado, seus membros muito provavelmente não observaram ainda o urbanismo como ferramenta pertencente a um organismo cultural maior. Nesta questão, o urbanismo e arquitetura modernistas se ajustaram confortavelmente aos interesses do poder capitalista consolidado e sua respectiva cultura mercadológica. Portanto, concluímos que a discussão proposta pelos situacionistas embrionários, puramente disciplinar e fragmentada sobre a arquitetura e o urbanismo, eram ainda os estágios iniciais da evolução deste pensamento, mas que definitivamente já demonstrara uma intenção de percorrer uma direção mais radical e abrangente.


Tais aspectos radicais e unitários dos debates propostos pelos situacionistas sobre a cultura moderna dominante, sendo o urbanismo naturalmente a ferramenta que aplica seus ideais hegemônicos nos espaços urbanos, viria a se desenvolver mais adiante. No texto de fundação da Internacional Situacionista em 1957, apresentado pelo seu principal mentor intelectual e líder Guy-Ernest Debord, explicita alguns dos conceitos, pretensões de ação e posicionamentos do movimento perante todo o aparato da cultura moderna, incluindo-se a prática urbanística e arquitetônica vigente no período:


O resultado atual da crise da cultura moderna é a decomposição ideológica. Nada de novo pode ser construído sobre essas ruínas, e o simples exercício do espírito crítico torna-se impossível(...)


(...)Gravíssimo sinal da decomposição ideológica atual é ver a teoria funcionalista da arquitetura fundamentar-se nos conceitos mais reacionários da sociedade e da moral. Significa que, as contribuições parciais passageiramente válidas da primeira Bauhaus ou da escola de Le Corbusier, acrescenta-se em surdina uma noção atrasadíssima da vida e de seu enquadramento.(...)


Não devemos recusar a cultura moderna, mas dela apossar-nos para chegar à sua negação.(...) (JACQUES, 2003, p. 49-53)


Nos fragmentos citados, notamos uma preocupação crítica dos situacionistas mais abrangente e unificada, logo no primeiro manifesto do grupo, reconhecendo a defasagem temporal da cultura moderna e suas respectivas implicações no urbanismo. Talvez uma percepção imediata dos situacionistas, ou uma primeira análise mais superficial sobre a impossibilidade de se atribuir diferentes significações nos espaços, ou seja, de se realizar as desejadas construções de situações através do détournement nas expressões e manifestações concretas do urbanismo modernista. No mesmo documento, observamos então uma primeira definição e um esboço teórico inicial do principal conceito desenvolvido pela I.S. para se realizar a crítica ao urbanismo como instrumento de propagação ideológica: O Urbanismo Unitário.


(...) Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram.


Nossas perspectivas de ação sobre o cenário chegam, no seu último estágio de desenvolvimento, à concepção de um urbanismo unitário. O urbanismo unitário (UU) define-se, em primeiro lugar, pelo emprego do conjunto das artes e técnicas, como meios de ação que convergem para uma composição integral do ambiente. É preciso pensar esse conjunto como infinitamente mais extenso do que o antigo domínio da arquitetura sobre as artes tradicionais (...)


(...) Deverá conter a criação de formas novas e o desvio das formas conhecidas da arquitetura e do urbanismo (...) A arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo (JACQUES, 2003, p. 54-55).


Conforme demonstrado acima, a idéia do urbanismo unitário seria neste momento inicial um instrumento teórico dos situacionistas para a realização prática de transformações desejadas nas estruturas cristalizadas pela cultura capitalista, primordialmente nos espaços urbanos. Isso ajudaria a responder parcialmente à problemática levantada pela primeira afirmativa inicial deste trabalho que, em sua primeira fase, os situacionistas pretendiam através da transformação da cidade, alcançar uma revolução e modificação na sociedade. Mas devemos ter cautela em fechar tal conclusão tão cedo.


Uma primeira definição oficial da idéia de urbanismo unitário fora então observada, juntamente com outros importantes conceitos formulados pelo grupo, na primeira edição da revista Internacional Situacionista, publicada em junho de 1958.


Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento (JACQUES, 2003, p. 65).


Esta definição remete à união das teorias e práticas experimentais formuladas pelos situacionistas. Uma das teorias em questão, a psicogeografia, estudava as interferências comportamentais de localidades previamente exploradas pela prática das derivas, que colaboravam no reconhecimento do meio urbano e suas nuances, e os impactos causados pelas diversas ambiências presentes num mesmo contexto de transformações e estranhamentos espaciais constantes, causados pela padronização e planificação em larga escala pelo urbanismo do período.


A idéia de padronização é um esforço para reduzir e simplificar, de modo mais equitativo, o maior número de necesidades humanas.(...)


Conforme o resultado, pode-se chegar ao total embrutecimento da vida humana ou à descoberta permanente de novos desejos. Mas, no contexto opressivo do mundo atual, esses novos desejos não se manifestarão espontaneamente. É indispensável uma ação comum para os detectar, manifestar e realizar (JORN, Asger. Revista I.S. nº1, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 77).


(...)esse mundo comanda nosso modo de ser e, por isso, nos esmaga. Se ele não for rearrumado – ou melhor, estilhaçado – não haverá possibilidade de organizar, num nível superior, o modo de vida (...) Os situacionistas sentem-se capazes, graças a seus métodos atuais e ao que neles ainda vai ser desenvolvido, não só de rearrumar o meio urbano, mas também de modificá-lo substancialmente (...) (KHATIB, Abdelhafid. Revista I.S. nº2, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 79).


As teorias e práticas situacionistas que formatavam o bloco conceitual do urbanismo unitário, aos poucos iam adquirindo um caráter cada vez mais experimental, tendo o situacionista holandês Constant como um dos principais entuasiastas e articuladores do desenvolvimento desta teoria.


(...) O programa mínimo da I.S. é a experiência de cenários completos, extensível a um urbanismo unitário, e a busca de novos comportamentos condizentes com esses cenários.(...)


(...) O urbanismo unitário se define na atividade complexa e permanente que, conscientemente, recria o meio ambiente do homem, segundo as noções mais evoluídas em todos os domínios.(...)


(...) O urbanismo unitário, independentemente de qualquer consideração estética, resulta de uma criatividade coletiva de novo tipo; e o desenvolvimento desse espírito de criação é a condição prévia do urbanismo unitário.(...)


(...) Uma situação construída é um meio de abordagem do urbanismo unitário, e o urbanismo unitário é a base indispensável ao desenvolvimento da construção de situações, como jogo e como seriedade de uma sociedade mais livre (Constant e DEBORD, Guy. Revista I.S. nº2, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 79).


No terceiro número da revista Internacional Situacionista, publicada em dezembro de 1959, observamos um texto assinado por Constant, descrevendo com riqueza de detalhes um exemplo de cidade situacionista. Em diversos trechos do texto, o autor lança críticas às obras dos arquitetos e urbanistas modernistas, principalmente sobre a padronização em larga escala da arquitetura desprovida de ornamentos e outros detalhes que teoricamente tornariam os ambientes mais familiares e agradáveis. Questiona as possibilidades de um melhor uso dos aparatos técnicos disponíveis alcançados até o momento, e afirma a necessidade de assumir o compromisso de um urbanismo feito para dar prazer. Em oposição à cidade verde adotada pela arquitetura moderna, Constant lança a idéia de uma enorme estrutura coberta, suspensa do solo por pilotis, onde todas as ruas seriam suplantadas dos espaços de habitação e de convivência comum, sendo transferidas para outros andares inferiores ou superiores da mega-estrutura. A edificação possui a prerrogativa de oferecer ambiências diversas e de caráter dinâmico, estabelecendo um diálogo e comunicação eficaz entre os diferentes espaços, de acordo com o conceito de construção de situações e a direta participação efetiva de todos os indivíduos nas tarefas de transformação dos espaços de acordo com suas demandas e desejos (Constant. Revista I.S. nº3, 1959. In: JACQUES, 2003, p. 114-117). Constant mais adiante batizaria a cidade utópica descrita de Nova Babilônia (JACQUES, 2003, p. 27), e realizaria diversas exposições individuais de suas obras referentes à concepção destes modelos de cidade futurista, mesmo após o seu afastamento dos situacionistas.


O desligamento de Constant da I.S., provavelmente não ocorrera por motivos de conflitos conceituais com os outros membros do movimento, envolvendo suas produções pessoais e as teses do urbanismo unitário desenvolvidas de forma coletiva. Foi observado que a expulsão de Constant deu-se no exato momento em que foi sinalizada a radicalização política e o engajamento no ativismo revolucionário do movimento. Antes disso, os debates e reflexões sobre o urbanismo apresentados por Constant e os situacionistas de maneira geral apresentavam coesão, e não foram observados nestes manifestos e textos contradições internas ou idéias opositoras às suas concepções de cidade situacionista.


A pesquisa psicogeográfica (...) assume assim seu duplo sentido de observação ativa das aglomerações urbanas de hoje, e de formulação de hipóteses sobre a estrutura de uma cidade situacionista (DEBORD, Guy. Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional, 1957. In: JACQUES, 2003, p. 55).


A situação construída, por sua preparação e seu desenrolar, é forçosamente coletiva. Pode porém ocorrer que, pelo menos no período das experiências iniciais, um indivíduo exerça, em dada situação, uma certa predominância, faça o papel de roteirista – encarregado de coordenar os elementos prévios de construção do cenário, bem como de prever algumas intervenções nos acontecimentos (...) (Internacional Situacionista. I.S. nº1, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 63)


Nossa proposta é inventar novos cenários moventes. (...) (IVAIN, Gilles. I.S. nº1, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 71)


Constant, que designou visualmente em forma de croquis, pinturas e maquetes a Nova Babilônia, utilizando-se dos conceitos formulados pelo grupo como a própria construção de situações somadas ao urbanismo unitário, e muitos outros estudos sobre as possibilidades técnológicas disponíveis para se construir cidades no período, apresentou concretamente alternativas que demonstrariam como seria um uso situacionista do espaço, indo além das limitações das cidades pré-existentes. Porém, devemos esclarecer que o conceito de urbanismo unitário defendido pelos situacionistas, incluindo Constant, não possuía em nenhum momento a prerrogativa de se tornar um novo paradigma urbanístico, mas sim de um modelo avançado de crítica e reflexão teórico-experimental ao urbanismo como ferramenta de propagação ideológica.


(...)O programa mínimo da I.S. é a experiência de cenários completos, extensível a um urbanismo unitário, e a busca de novos comportamentos condizentes com esses cenários.(...) (Constant e DEBORD, Guy. I.S. nº2, 1958. In: JACQUES, 2003, p. 95-96)


(...) Todas as reflexões que já fizemos a esse respeito, as experiências de deriva, os estudos e os mapas psicogeográficos, as maquetes de ambiências, tudo isso contribui desde o início pra o seu desenvolvimento. Vamos acelerar agora o passo com medidas apropriadas. Para isso, decidimos fundar, em Amsterdã, um bureau de pesquisas para o urbanismo unitário, cuja tarefa será a realização do trabalho em grupo e o estudo de soluções práticas.(...) (Constant. I.S. nº3, 1959. In: JACQUES, 2003, p. 106 - 108)


(...) o urbanismo unitário não é uma doutrina do urbanismo, mas uma crítica ao urbanismo. (...)


Neste momento, ele busca um terreno de experiência para o espaço social nas cidades futuras. (...)


O urbanismo unitário não está separado do atual terreno das cidades.(...) Deve tanto explorar os cenários atuais,(...) quanto construir outros, totalmente inéditos.(...) (Internacional Situacionista. I.S. nº3, 1959. In: JACQUES, 2003, p. 100 - 103)


O momento do abandono das idéias do urbanismo unitário pelos situacionistas, fato explicitamente publicado no texto Crítica ao urbanismo presente na Revista Internacional Situacionista nº6 em agosto de 1961, acusam não só o urbanismo unitário, mas qualquer outro tipo de prática possível do urbanismo como uma "mentira urbanista e social existente" e que reproduzem o "próprio espaço da mentira social e da exploração reforçada". As explicações expostas pelo grupo para esta estranha e extrema mudança de direcionamento de suas idéias, que, diga-se de passagem, não destoava do discurso revolucionário proposto pelos situacionistas desde o início, que sempre visualizou o urbanismo como um equipamento pertencente a todo um aparato cultural hegemônico em processo de degeneração contínua, consistiram nas retóricas de transformação revolucionária primordial da sociedade como base "para uma vida experimental de que trata o programa de urbanismo unitário". (Internacional Situacionista. Revista I.S. nº6, 1961. In: JACQUES, 2003, p. 132 - 138)


Guy Debord assinou no mesmo número da revista um outro texto chamado Perspectivas de modificações conscientes na vida cotidiana, sinalizando neste sentido revolucionário que "não é um movimento cultural de vanguarda, mesmo com pretensões revolucionárias, que pode realizar isso. Tampouco um partido revolucionário de modelo tradicional, mesmo que conceda atenção à crítica da cultura". Para Debord, a transformação social radical deveria ser realizada por um novo modelo de organização revolucionária e que "marcará o fim de toda expressão artística unilateral, armazenada sob a forma de mercadoria, simultâneo ao fim de toda política especializada" (DEBORD, Guy. Revista I.S. nº6, 1961. In: JACQUES, 2003, p. 143 - 152).


Estes textos seriam os embriões da segunda fase do movimento situacionista, encabeçada principalmente por Guy Debord, com foco no ativismo e propaganda hiperpolítica que mais tarde instigaria os ânimos dos estudantes e trabalhadores nas organizações de seus conselhos e assembléias no maio de 68 francês. Neste momento, finalmente observamos que na visão dos situacionistas, a prerrogativa de se realizar uma revolução na sociedade através da transformação física da cidade, pode valer-se verdadeira numa primeira análise mais superficial sobre suas teses e pensamentos urbanos. Tal afirmação seria muito mais próxima e cabível ao pensamento dos urbanistas oficiais do período.


Os situacionistas chegaram a uma convicção exatamente contrária à dos arquitetos modernos. Enquanto os modernos acreditaram, num determinado momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. (JACQUES, 2003, p. 19)


Para os situacionistas, tanto em sua primeira fase quanto na segunda, a principal condição de transformação da cidade e da sociedade deveria ser através de uma revolução radical na atual cultura mercadológica, que legitima em todas as estruturas sociais as ações arbitrárias do capital, com a sua constante necessidade de readequação frente aos novos desafios e idéias revolucionárias geradas pelas suas próprias contradições internas. Este aspecto de revolução cultural fora a característica que marcou o movimento situacionista do início ao fim, mesmo nos momentos de rachas, desentendimentos internos e mudanças metodológicas.


Guy Debord ainda retomaria a discussão sobre o urbanismo no capítulo A ordenação do território, presente em seu livro Sociedade do espetáculo lançado em 1967. Nesta abordagem, o autor não realiza citações ou alusões ao urbanismo unitário situacionista, mas ilustra o urbanismo como um equipamento autoritário que configura a base geral ou território da reprodução contínua do poder material da sociedade capitalista, de acordo com a sua lógica de separação e alienação (DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.). Definição esta que se aproxima muito das teses do urbanismo revolucionário anteriormente defendidas pelos situacionistas.


11- Teoria inicialmente formulada pelo filósofo liberal inglês John Locke em sua obra Ensaio Acerca do Entendimento Humano, publicada originalmente em 1690, que defendia a total igualdade dos indivíduos ao nascer; "O homem nasce como uma folha em branco", sendo estes condicionados a determinados ensinamentos e diretrizes sociais durante seu aprendizado, através do empirismo.


12- ROSS, Kristin. Henry Lefebvre on the Situationist International: An interview. Entrevista realizada em 1983, traduzida por Claudio Roberto Duarte. Disponível no site: http://www.rizoma.net/interna.php?id=138&secao=potlatch.


13- Para uma crítica semelhante mas com outros pressupostos: JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.


14- Fragmento retirado do texto Arquitetura para a vida escrito pelo então pré-situacionista Asger Jorn, publicado na revista Potlatch Nº15 em dezembro de 1954. Disponível no site: http://br.geocities.com/anopetil/situacionistas.htm.


15- Fragmento de texto coletivo atribuída aos pré-situacionistas, utilizado por Paola Berenstein Jacques em Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade. Retirado da revista Potlatch Nº23, publicada em outubro de 1955.





CAPÍTULO III


A herança situacionista na cultura e política contemporânea


"Voltaremos"


Frase escrita no Censier, na noite das investidas policiais que desmantelaram as últimas ocupações do maio de 68.


O movimento situacionista, com toda sua dedicação e orientação teórica aos movimentos revolucionários radicais estudantis e dos conselhos operários no maio de 1968 francês, e antes disso lançando suas críticas às esferas culturais, com destaque às teses urbanistas revolucionárias, apesar do aparente fracasso de uma revolução unitária envolvendo todas as estruturas sociais, obteve um sucesso parcial no sentido de colaborar na superação de parte da cultura moderna dominante.


Entretanto, tais mudanças na cultura não demonstraram ser suficientemente abrangentes a ponto de transformar as infra-estruturas sociais e desestabilizar o poder dominante, que de maneira muito astuciosa, apropriou-se dos novos conceitos idealizados pelos situacionistas, juntamente com outros grupos e frentes contraculturais existentes no mesmo período ao redor do mundo, para a remodelação cultural necessária para a consolidação da nova configuração estabelecida do capital mundial que se tornara cada vez mais difuso e avançado nas sociedades. Apesar da crítica situacionista à cultura dominante possuir um discurso e posicionamento radical perante as ideologias emanadas por estes poderes, na realidade apresentou uma divisão muito tênue do distanciamento imaginado entre as duas esferas.


Estas idéias demonstram diálogos e influências mútuas de ambos os lados(16), o que poderíamos imaginar que a crítica difundida pela I.S. poderia ter sido semeada à partir das condições contraditórias internamente criadas pelo capitalismo, e ser um desdobramento e renovação natural a partir da degeneração da cultura moderna que legitimou as práticas do capital. Este aspecto de diálogo entre a cultura do poder hegemônico e a cultura marginal, se aproxima à tese de circularidade cultural proposta por Mikhail Bakhtin(17), que se aplica nos ciclos de defasagem e decomposição de uma determinada cultura. Nesta linha decadente, o novo poder a ser consolidado ou remanejado, realiza substanciais empréstimos e apropriações das culturas consideradas revolucionárias provenientes das massas e seus respectivos representantes intelectuais, na remodelação desejada para o ajustamento do novo poder e sua cultura oficial.


Os atuais debates acerca de um pretenso pós-modernismo(18), interpretado como readequação ou remodelação do modernismo a legitimar culturalmente a nova roupagem do capitalismo contemporâneo, demonstram claramente características comuns às idéias defendidas pelos situacionistas. Hipoteticamente, uma apropriação consciente ou não destes ideais, de forma a adestrar alguns dos conceitos mais moderados apropriadamente às necessidades das novas dimensões de poder alcançadas pelo capital, e cautelosamente sufocar e esterilizar os discursos mais radicais e possivelmente irradiadores de sentimentos revolucionários que possam ameaçá-lo. Por outro lado, a tradição revolucionária situacionista atualmente encontra ecos de suas produções e conceitos em diversos grupos e manifestações ao redor do mundo, tanto no ativismo puramente político, quanto nas esferas (contra) culturais.


No ativismo político, notamos diversos movimentos anti-globalização (MAG) espalhados pelo mundo, que se utilizam de alguns métodos de ocupação espacial e de subversão pacífica de imagens e símbolos, ambos através do conceito de desvio situacionista, o détournement. De maneira geral, os grupos anti-globalização realizam manifestações e enfrentamentos aprioristicamente pacíficos, mas com ideais claros de subversão política, sendo muitas vezes repreendidos com excessiva e desproporcional violência pelas forças governamentais(19).


Nas esferas de crítica da atual condição cultural do capitalismo, as manifestações que mais se destacam, claramente influenciadas pelas teses de crítica radical disseminada pelos situacionistas e outros grupos, são os escritores subversivos supostamente anônimos como Luther Blisset, e alguns coletivos apartidários e iconoclastas(20) que convergem seus diferentes métodos na crítica radical à superação da cultura mercadológica, que segundo eles, é a condição estrutural fundamental que sustenta o atual poder capitalista na sociedade em escala mundial.


Atualmente, a influência da produção crítica revolucionária realizada pela I.S. durante sua trajetória, é muito mais perceptível nas atividades dos grupos pertencentes às esferas contraculturais e do ativismo político. Neste sentido, hoje observamos o quase desaparecimento das citações e alusões às teses e práticas experimentais do pensamento urbano situacionista.


Um importante e valioso instrumento teórico-experimental que nos convida à reflexão e ao debate, para que haja a possibilidade de entendermos e superarmos as atuais relações sociais urbanas que se tornam cada vez mais complexas e problemáticas, pelo constante agravamento das contradições inerentes às estas estruturas e instituições que se perpetuam através do reajustamento cultural e da repetição cotidiana.


16- Durante a existência da I.S., o grupo mantinha contatos relativamente próximos com o TeamX por exemplo, grupo de arquitetos pertencentes à própria esfera cultural moderna oficial (CIAMs), que propunham uma reformulação conceitual dos ideais racionalistas dos antigos modernos (JACQUES, 2003, p. 25 - 29).


17- BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1993.


18- Na obra Condição pós-moderna de David Harvey, encontramos diversos conceitos atribuídos ao pós-modernismo que se aproximam de alguns fragmentos das teses situacionistas.


19- Relatos e fotografias sobre estes movimentos no Brasil podem ser encontrados na obra Estamos vencendo – resistência global no Brasil, de Andre Ryoki e Pablo Ortelado.


20- Podemos destacar o coletivo Critical Art Ensemble, que segundo os próprios, é formado por cinco ativistas, focados na exploração das intersecções entre arte, teoria crítica, tecnologia e política radical (ENSEMBLE, Critical Art. Disturbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001.).


000000000000000001111111111111111111111111111111111111111100000000000000000000000